Nunca me imaginei como uma
Balzaquiana, e nem de longe me sinto uma. Aliás, como deveria sentir-se uma
mulher de 30 anos? Como deveria sentir-se uma mulher? Sei que ainda sou uma,
mas é compreensível que eu não saiba o que pensar na atual situação que me
encontro.
Todos estão aqui: minha mãe, meu
pai, Letícia, tia Carmen e tio Rubens. Depois de me cumprimentarem, trocarem
aqueles olhares tristes e a minha mãe disfarçadamente enxugar a bendita
lágrima, tiveram que encontrar um assunto para tornar aquela reunião o mais
próxima de uma comemoração normal.
Letícia contou que foi demitida
do escritório de advocacia. Lembro que ela havia me contado que estava
trabalhando em um prédio maravilhoso na Av. Paulista, e que tinha gastado uma
pequena fortuna comprando roupas novas.
Sei que ela conversava comigo de
acordo com as orientações dos médicos, que diziam que eu ouvia e entendia tudo
perfeitamente, mas nesse dia tive vontade de dizer: “Sério que você está
reclamando de comprar roupas enquanto eu estou imóvel em uma cama de hospital
para sempre”?
Tio Rubens lamentou e disse que a
crise estava acabando com o país. Meu pai começou a xingar a Dilma e amaldiçoar
todos que votaram nela. Letícia havia votado, e talvez nesse momento ela estava
feliz por saber que o segredo estava bem guardado comigo.
A conversa seguiu para outros
assuntos, mas o tom de lamentação era o mesmo. Sempre que aconteciam essas
reuniões, eu me perguntava: será que a vida deles está assim tão ruim mesmo, ou
é a minha presença que os obriga a mostrar essa infelicidade constante? Algo do
tipo: “Olha, estamos tristes, tá vendo? Ninguém aqui pode ser feliz com você
desse jeito”.
Não vou mentir: No começo, era
isso que eu queria. Quando comecei a perder os movimentos da perna, cerca de 2
meses depois das primeiras dores no joelho, não entendia muito bem o que estava
acontecendo com o meu corpo. Os médicos já apontavam a Esclerose como a
responsável por aquilo, mas eu ignorava completamente essa explicação.
Por que não existia explicação
para uma mulher de 25 anos, saudável, prestes a se formar e com todo o tempo do
mundo pela frente, de repente não conseguir mais andar. Nunca me achei bonita,
tinha traços muito diferentes do considerado “padrão ideal de beleza”. Olhos
muito grandes, boca pequena e a pele pálida, quase um fantasma. Os cabelos eram
muito ralos. Que saudades de pentear meus cabelos.
Mesmo assim, sabia que era
inteligente e seria uma grande advogada. Fazia estágio em um escritório na
Berrini, cheio de prédios espelhados e gente bonita. Adorava respirar o ar de
poder que emanava daquele lugar. Quanta besteira.
E foi na volta de um almoço que
eu comecei a sentir as primeiras dores no joelho. No dia eu nem liguei, mas os
dias intermináveis no hospital me fizeram buscar na memória o momento do inicio
do fim.
As dores começaram a se
intensificar, até que um dia tive que faltar no estágio, pois não conseguia
andar direito. Procurei um ortopedista, os exames começaram, os movimentos
foram ficando cada vez mais limitados, até que o diagnóstico e a cadeira de
rodas vieram.
Eles diziam que poderia ser
genético. Era tudo muito injusto. E se já não bastasse eu destruir a vida da
minha família por estar ficando inválida, eu tive a capacidade de me tornar uma
sanguessuga da pior espécie.
Quando via Letícia se arrumando para sair na noite de
sábado, talvez com a esperança de relaxar um pouco depois de passar a semana
cuidando da irmã aleijada, eu criava um drama. Dizia que precisava dela comigo.
Se via minha mãe no telefone, conversando
com tia Carmem e soltando uma risadinha qualquer, provavelmente após ela contar
alguma caduquice do tio Rubens, eu começava a “gemer” alto de dor, para que ela
viesse até mim. Não que eu realmente não sentisse dores, mas no começo elas não
eram tão lancinantes. Queria chamar a atenção o máximo possível, era
inaceitável qualquer resquício de felicidade perto de mim.
No fundo, eu alimentava uma
ilusão quase inocente, de que tudo não passava de um momento de rebeldia do meu
corpo. Talvez algumas sessões de fisioterapia aliadas a uma medicação mais
pesada resolvessem aquilo
Os meses foram passando, e com
eles, meus movimentos iam se despedindo do meu corpo. Quando meus braços se
paralisaram e precisei ser alimentada na boca como um bebê de 3 anos, minha
ficha começou a cair.
Minha vida tinha acabado.
A depressão chegou de certa forma
tardia, mas chegou. “É normal” – diziam os médicos para os meus pais. Meu único
pensamento era a morte, e maneiras de me matar. Mas como uma pessoa que não
consegue comer sozinha pode tirar a própria vida? Várias vezes fechei os olhos
e prendi a respiração, mas meus pulmões, apesar de frágeis, sempre venciam esse
desafio.
Sabia que era questão de tempo perder a fala. E quando
aconteceu, considerei um passo a mais em direção a morte. Ou seja, não foi tão
ruim assim. Nesses dois anos esperando “o grande dia”, acho que já repassei em
minha mente todos os momentos em que eu poderia ter feito algo que não fiz.
Já me lamentei por não ter comido aquela coxinha no happy
hour por conta da dieta, de não ter assistido aquele filme por que era muito
depressivo ir no cinema sozinha, por não ter transado com o Pedro por que ele
era feio (uma transa a menos na minha vida) e de coisas tão ridículas e
maravilhosas que eu não acredito até hoje que deixei de fazer.
Isso adianta alguma coisa? É claro que não. Mas a minha
mente continua mais viva do que nunca. É impossível controlar os pensamentos
quando você sequer tem controle sobre sua mão.
Existia uma grande vantagem na depressão. Ela me impedia
de pensar “e se eu tivesse saudável agora, o que poderia estar fazendo”. Isso
era uma grande dádiva, pois não suportaria ter sonhos a essa altura do
campeonato. Tinha apenas um desejo, que seria realizado em breve.
Sentiria saudades da sua família, mas aquele egoísmo do
começo já não existia mais. Apesar de gostar de ouvir vozes familiares de vez
em quando, não queria mais ser o estorvo da vida de todos.
Vejo os dias passarem, mas não
sei o que é segunda ou sexta. Não consigo mais definir o que é o tempo, só
espero a chegada de um outro tempo, em outra dimensão, ou sei lá onde for.
Enfim, a reunião acabou. Os
beijos na testa me fazem lembrar por alguns segundos que ainda sou um ser
humano, uma mulher balzaquiana. As portas se fecham, e alguma espécie de vida
continua.
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