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Marcela e a caixa



Marcela sempre foi um exemplo de menina. Em casa, na escola, todos a admiravam pela sua delicadeza e simpatia. Estava sempre disposta a ajudar seus amigos e as pessoas próximas, afinal, todos precisam de alguém assim. E todos contavam com ela.
Mesmo depois de moça, ela continuava a ser muito prestativa, sempre com uma palavra compreensiva e um gesto de atenção.
Mas algo sempre intrigou as pessoas próximas de Marcela. Desde pequena, ela andava com uma pequena caixa de madeira em suas mãos. Ia com o objeto para todos os lados e dificilmente o soltava, a não ser para dormir, tomar banho ou comer.
Todos eram curiosos para saber o que Marcela carregava dentro daquele objeto, mas nunca se preocupavam muito, afinal, ela era uma ótima pessoa. E isso nunca interferiu na vida de ninguém.
Em um certo dia, Marcela estava sentada no banco de uma praça, com a caixa de madeira ao seu lado. Estava despreocupada, pensando em sua vida e nas pessoas, até que um senhor sentou ao seu lado. Imediatamente, Marcela pegou sua caixa.
O velho homem percebeu o gesto, e o achou familiar.
- Hoje está um dia bonito, não? - puxou assunto o velho.
- Sim, muito bonito - respondeu Marcela. O senhor costuma passear por aqui?
- Ás vezes...gosto de observar a movimentação da rua. E você?
- Eu o que?
- Costuma passear por aqui? - perguntou o senhor, com um sorriso divertido.
- Ah sim, ás vezes. O senhor vem sempre sozinho?
- Sim, eu gosto de ficar sozinho de vez em quando. As pessoas me cansam ás vezes.
Marcela arregalou levemente os olhos com essa afirmação.
- Como as pessoas te cansam? - ela perguntou.
- Na verdade, acho que não são as pessoas que me cansam. Eu já nasci cansado. Não fui feito para esse mundo, e olha que com a minha idade, eu já deveria ter me acostumado - sorriu o idoso.
- Isso deve ser...um pouco triste - disse Marcela.
- Bom, ás vezes é sim. Mas era muito mais triste quando eu era jovem.
- Por quê?
- Porque eu agia contra o meu instinto natural. Tinha muitos amigos, muitas pessoas em minha volta. Mas todos, apesar de próximos, eram diferentes de mim. Como eu era "minoria", sempre fui um pouco diminuído. Então, fui o ouvido amigo, o conselheiro...porque conhecia muito bem todos, mas ninguém me conhecia.
Marcela escutava atenta, e ao mesmo tempo um pouco assustada.
- E você não é mais assim? - perguntou.
- Sempre gostei mais de ouvir do que de falar, gosto de conhecer a história das pessoas. E foi com isso que aprendi ao longo dos anos que as pessoas passam a vida a falar, cobrar do próximo, olhar para dentro de si mesmas..travando diariamente pequenas lutas de ego. A grande maioria não percebe que age assim, afinal, estão de certa forma "cegos". Mas existem pessoas que não são tão cegas assim. Essas enxergam as atitudes alheias e as próprias de uma forma diferente, mais clara. E nessa luta, esses indivíduos acabam mais como "expectadores", que muitas vezes só escutam e aconselham...e vivem as suas lutas calados.
E ao contrário da maioria, esses dificilmente possuem alguém para escutá-los e aconselhá-los.
Marcela sentia seus olhos enchendo de lágrimas.
O velho continuou:
- Quando eu percebi que era um expectador, consegui direcionar melhor o meu olhar para as situações e pessoas "certas". Isso foi muito bom, tirei um peso que levava comigo o tempo todo. Era como se eu carregasse algo pesado..como uma caixa.
Marcela olhou para a sua caixa e começou a chorar, tocada por tudo que acabara de ouvir. O velho senhor então tirou levemente a caixa das mãos da moça, e disse:
- Não deixe o mundo te aprisionar. Viva e observe o que há de bom, mas faça isso com os seus olhos. Não importa se eles enxergam o que ninguém vê, o importante é que você vê.
Então Marcela deu um forte abraço no velho senhor, levantou-se do banco e partiu, com uma liberdade que nunca havia sentido antes.
O senhor observou a moça indo embora, com um largo sorriso de satisfação.
- Ela agora tem os braços livres. Agora sim, pode até voar...


*2011

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